O fato de ter Deus criado todas as coisas e de que ele mesmo as sustenta e põe em movimento por meio de seu poder desencadeia uma série questões relacionadas à extensão de sua soberania, à extensão de seu controle, à exaustividade de seus decretos e à natureza de sua influência sobre a vontade humana. Na verdade, muitas outras questões são também formuladas a partir das asserções cosmológicas mais básicas do cristianismo.
Entre essas indagações ligadas ao controle divino sobre os fatos do eixo criação-queda-redenção, uma das mais importantes é que diz respeito à ordem dos decretos de Deus. Essa indagação interroga se Deus decretou a eleição e reprovação dos homens antes do decreto da Queda (posição conhecida como supralapsarianismo) ou se ele decretou primeiro a Queda do homem e depois decretou a eleição e uma reprovação passiva de certos indivíduos (posição conhecida como infralapsarianismo).
A posição bíblica é, com gritante evidência, o supralapsarianismo.
Na perspectiva supralapsariana, a ordem dos decretos divinos costuma iniciar com a eleição e a reprovação ativa de certos indivíduos. Contudo, uma vez que mesmo a eleição e a reprovação são teleológicas, isto é, servem a um propósito logicamente anterior, costumo iniciar a cadeia supralapsariana de decretos com o primeiro e mais importante de seus propósitos e, aparentemente, o que enseja a todos os demais: a glória de Deus. Assim, a cadeia supralapsariana de decretos pode ser esboçada da seguinte maneira:
(I) glória de Deus (o fim último de todos os movimentos);
(II) eleição de alguns indivíduos para a salvação e de alguns indivíduos para a condenação;
(III) provisão de uma salvação para os eleitos;
(IV) aplicação dos benefícios redentores de Cristo aos eleitos;
(V) queda do homem; e
(VI) criação.
A argumentação bíblica em favor do supralapsarianismo cristaliza-se a partir do princípio hermenêutico de que "todo o conselho de Deus concernente a todas as coisas necessárias para a glória dele e para a salvação, fé e vida do homem, ou é expressamente declarado na Escritura ou pode ser lógica e claramente deduzido dela" (CFW I.VI). Ora, a orientação supralapsariana é, sobretudo, uma orientação lógica. E conforme sabiamente atesta a Confissão de Fé de Westminster, o que pode ser "lógica e claramente deduzido" das Escrituras deve ser considerado Palavra de Deus da mesma forma que aquelas informações expressamente declaradas.
De que maneira, porém, o supralapsarianismo é uma perspectiva lógica? Tal posição é uma perspectiva lógica não porque um ou mais textos da Escritura a expõe em linguagem técnica e por meio de critérios escolásticos. Antes, trata-se de uma perspectiva lógica porque cada decreto de sua estrutura é revelado, na Bíblia, como o meio para seu antecessor, e todos eles partindo do primeiro decreto de Deus, relacionado à sua própria glória.
Segue-se, portanto, que a criação do homem é o meio para que Deus possa fazê-lo pecar, que é o meio pelo qual a obra de Cristo torna-se necessária, que é o meio para que Deus possa salvar o homem, que é o meio para que os decretos da eleição e condenação sejam cumpridos, que é o meio para que Deus seja glorificado tanto pela manifestação de sua ira quanto pela manifestação de sua misericórdia (Rm 9.22,23).
Segundo a teologia exposta na Bíblia, um evento não é possível sem o outro. Simplesmente não é possível. Este, então, é o argumento derradeiro do supralapsarianismo em oposição ao infralapsarianismo: enquanto o infra parte de um biblicismo mal articulado segundo o qual a ideia de doutrina deve equivaler a um enunciado cuja forma corresponda precisamente ao que se pretende ensinar, o supra parte de uma exposição lógica a partir dos dados claramente expressos na Escritura. O supralapsarianismo expõe a ordem da formulação dos decretos de Deus enquanto o infralapsarianismo expõe a ordem de sua execução histórica. Contudo, a ideia inteira por trás da formulação desses modelos que visam organizar os decretos de Deus é explicar sua ordem em uma perspectiva metafísica, e não histórica. A intenção em prover modelos para a compreensão da ordem dos decretos leva, de antemão, a ideia de que tal ordem deve ecoar sua formulação, e não seu desenvolvimento contingente. Desse modo, o supralapsarianismo é bíblico e o infralapsarianismo não é.
Diante disso, qual a razão de ser da perspectiva infralapsariana?
Em primeiro lugar, o infralapsarianismo, aparentemente, tenta preservar a perfeição da justiça de Deus, que supostamente deveria esperar a queda do homem para então endereçar os decretos ligados a sua salvação. Todavia, aqui novamente transparece o erro infralapsariano de confundir a ordem dos decretos com a ordem de sua aplicação histórica. Com efeito, aliás, no que concerne à aplicação histórica, o Senhor realmente espera a queda do homem para depois aplicar sua salvação.
Em segundo, o infralapsarianismo, sobretudo quando confundido com o arminianismo, se esforça por retirar de Deus qualquer relação metafísica com o pecado em favor de uma preocupação teológica injustificada segundo a qual Deus, por ser completamente bom e sem pecado, não pode ser autor do mal. Mas a ligação metafísica de Deus com o pecado é escancaradamente bíblica e, embora seja perfeitamente claro que Deus é completamente bom e sem pecado, isso em nada muda fato de Deus ser o autor do mal: autoria e responsabilidade moral são conceitos completamente distintos. A Escritura define o pecado como transgressão da lei de Deus (1Jo 3.4). Se Deus ordena que o homem peque, ainda que Deus seja o agente causal do pecado, quem transgrediu a lei foi o homem, não Deus. Para que fosse considerado errado o fato de Deus ordenar que o homem tenha pecado, Deus deveria ter, antes, decretado uma lei moral dizendo que seria pecado a sua própria ação de decretar o pecado. Todavia, Deus não decretou tal lei, de modo que não foi pecado Deus ter decretado o pecado, e de modo que ao homem que pecou seja atribuída responsabilidade moral, pois ele sim transgrediu a lei.
Dessa forma, o infralapsarianismo não tem realmente um caso a ser defendido. Já o supralapsarianismo é mui clara e logicamente justificado. Se Deus sabe o fim desde o começo (Is 46.10) significa que ele decreta primeiramente os fins e, depois, os meios para esses fins. A organização supralapsariana dos decretos divinos entende a natureza teleológica dos decretos e os posiciona de forma lógica e biblicamente orientada.