Socialismo e comunismo: You say tomato, I say tomato
21:13
Uma questão frequente nos debates políticos, filosóficos, historiográficos e econômicos é da conceitualização de socialismo e comunismo como modelos econômicos essencialmente iguais ou essencialmente distintos. A possibilidade de uma acepção entre ambos é muito importante sobretudo para os esquerdistas visto que uma diferença entre esses sistemas supostamente imunizaria sua política de intervenção estatal à infâmia de regimes falidos e vituperados pela realidade.
Contudo, socialismo e comunismo podem realmente ser considerados regimes diferentes em sua essência? Ou seriam eles uma variação dentro da própria espécie?
É um fato que os favoráveis à intervenção estatal sempre tentarão identificar diferentes tipos de socialismo com diferentes tipos de modelos econômicos. Eles tentarão argumentar que a política econômica da Venezuela é um modelo completamente distinto daquela radicada na Coreia do Norte, por exemplo. E, de fato, o próprio termo socialismo pode carregar uma certa elasticidade. Entretanto, seria o termo elástico ao ponto da amorfia?
Com efeito, é possível identificar no socialismo um conjunto de assertivas econômicas, epistemológicas, antropológicas, éticas e políticas (e mesmo metafísicas) que configuram um "kerigma" do sistema - um núcleo-base essencial de compromissos sobre o qual podem ser assentadas formas ligeiramente díspares de apresentação. No momento, apenas a camada econômica será enfocada.
Basicamente, uma economia socialista é fundamentada sobre duas táticas administrativas:
1) Provisão pública de bens não-públicos;
2) Planejamento econômico centralizado.
Onde quer que essas práticas econômicas existam, ali poderá ser identificado um modelo socialista, ainda que em níveis variáveis de consolidação.
A provisão pública de bens não-públicos, também chamada de Estado de bem-estar social, caracteriza-se pelo fornecimento público de serviços ou produtos que deveriam ser fornecidos pelo livre-mercado sob a penalidade de infração de princípios morais elementares [1]. Educação, saúde e alimentos, por exemplo, são produtos e serviços que deveriam ser fornecidos exclusivamente pelo livre-mercado [2]. Enquanto a provisão pública de bens não-públicos, sozinha, possa ser considerada uma "prática socialista de ante-sala", seus pressupostos éticos, políticos e, em última análise, os elementos de sua visão de mundo, são imorais o suficiente. O Estado de bem-estar social é, objetivamente, a velha redistribuição forçada de renda, porém, instrumentalizada pelo aparato de "instituições democráticas".
Por sua vez, o planejamento econômico centralizado é, de fato, a tônica dos modelos econômicos que advogam a intervenção do Estado nas práticas comerciais. O planejamento consiste em uma cúpula de "especialistas" buscando, por especulação e lógica indutiva, determinar o que as pessoas gostam de comprar e o quanto elas querem pagar por esses itens. É a ponerologia totalitária aplicada à economia.
A existência de um planejamento econômico centralizado pressupõe onisciência por parte de uma pessoa ou grupo de pessoas na ordem de determinar as necessidades de cada indivíduo da nação, bem como os valores que esses indivíduos atribuem aos produtos e serviços que, particularmente, gostariam de adquirir. Ora, é claro que o planejamento centralizado não é capaz de antever um número infinito de possibilidades, preferências e, ainda, alinhar essas informações a uma estratégia de precificação que satisfaça às condições individuais de cada cidadão. A saída para tal empreitada é, invariavelmente, renunciar à pretensão de onisciência e adotar o caminho contrário: o do controle - ao invés de investigar o que os indivíduos gostam ou precisam (supondo ainda que eles não mudem de ideia) o Estado, com base em seu planejamento, passa a determinar o que os indivíduos gostam ou precisam.
Esses são os dois fatores que qualificam uma política econômica como socialista. A pergunta, neste ponto, é: esses mesmos fatores estão presentes no comunismo?
A resposta é: certamente que sim.
O comunismo pode ser considerado como a elevação do socialismo à sua solidificação apoteótica. O comunismo subscreve cada tópico da agenda do Estado de bem-estar social; afirma, evidentemente, o planejamento econômico centralizado; e concretiza seu projeto pela estatização completa dos meios de produção. Em suma, socialismo e comunismo são, essencialmente, a mesma doutrina econômica. Nas palavras dos professores Sweezy e Huberman,
Socialismo e comunismo são parecidos por ambos serem sistemas de produção baseados [...] no planejamento centralizado. O socialismo nasce diretamente do capitalismo; é a primeira forma da nova sociedade. O comunismo é um desenvolvimento subsequente ou um “estágio avançado” do socialismo. O socialismo é o estágio de transição necessário do capitalismo ao comunismo. Não se deve pensar, diante da distinção entre socialismo e comunismo, que os partidos políticos espalhados pelo mundo que se chamam Socialistas defendam o socialismo, enquanto aqueles que se intitulam Comunistas defendam o comunismo. Não é assim. Uma vez que o sucessor imediato do capitalismo só pode ser o socialismo, os partidos comunistas, assim como os partidos socialistas, têm como objetivo o estabelecimento do socialismo [3].
Sweezy e Huberman são socialistas e escrevem para o Monthly Review, um dos maiores periódicos esquerdistas dos EUA.
Apesar da reconhecida ojeriza ao comunismo, processada mesmo entre muitos socialistas, não há escapatória ao fato de que os desastres comunistas dos quais a história testemunha são, em gênero, número e grau, desastres socialistas. É inevitável como a lei da gravidade que a distribuição coercitiva de renda e o planejamento centralizado da economia sempre levam suas respectivas nações à desgraça e à miséria. Dependendo do local e do contexto cultural onde se instalam, isso pode levar mais ou menos tempo, bem como suas consequências podem ser mais ou menos dramáticas, assim como o nível da estatização pode influenciar a "estética" com que se apresenta o socialismo em determinado local. Contudo, em última instância, as doutrinas vermelhas são correlatas: tomato - tomato, socialismo - comunismo.
Notas e referências
1. O fornecimento de serviços públicos, na prática, significa que os cidadãos paguem pelos serviços e produtos que não querem consumir, que são piores do que os gostariam de comprar, além de custearem essas provisões para outras pessoas, de forma coercitiva. O Estado de bem-estar social viola o mais elementar direito à liberdade de consciência e de vontade.
2. A frequente e débil objeção que recebo ao defender o Estado mínimo na economia é a de que tal política flagelaria os mais pobres, que não têm recursos para custear tais produtos e serviços. Minha resposta, como sempre, é a de que os mais pobres já o fazem! Eles apenas pagam ao Estado para que o Estado lhes dê o que pagaram; todavia, com o diferencial de receberem muito menos do que desembolsaram tanto em termos quantitativos (o governo fica com uma fração para custos administrativos e apartamentos duplex) quanto em termos qualitativos (todos recebem um serviço péssimo).
3. SWEEZY, Paul; HUBERMAN, Leo apud WILLIAMSON, Kevin D. O livro politicamente incorreto da esquerda e do socialismo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira Participações, 2013, posição 944 (Kindle).
Contudo, socialismo e comunismo podem realmente ser considerados regimes diferentes em sua essência? Ou seriam eles uma variação dentro da própria espécie?
É um fato que os favoráveis à intervenção estatal sempre tentarão identificar diferentes tipos de socialismo com diferentes tipos de modelos econômicos. Eles tentarão argumentar que a política econômica da Venezuela é um modelo completamente distinto daquela radicada na Coreia do Norte, por exemplo. E, de fato, o próprio termo socialismo pode carregar uma certa elasticidade. Entretanto, seria o termo elástico ao ponto da amorfia?
Com efeito, é possível identificar no socialismo um conjunto de assertivas econômicas, epistemológicas, antropológicas, éticas e políticas (e mesmo metafísicas) que configuram um "kerigma" do sistema - um núcleo-base essencial de compromissos sobre o qual podem ser assentadas formas ligeiramente díspares de apresentação. No momento, apenas a camada econômica será enfocada.
Basicamente, uma economia socialista é fundamentada sobre duas táticas administrativas:
1) Provisão pública de bens não-públicos;
2) Planejamento econômico centralizado.
Onde quer que essas práticas econômicas existam, ali poderá ser identificado um modelo socialista, ainda que em níveis variáveis de consolidação.
A provisão pública de bens não-públicos, também chamada de Estado de bem-estar social, caracteriza-se pelo fornecimento público de serviços ou produtos que deveriam ser fornecidos pelo livre-mercado sob a penalidade de infração de princípios morais elementares [1]. Educação, saúde e alimentos, por exemplo, são produtos e serviços que deveriam ser fornecidos exclusivamente pelo livre-mercado [2]. Enquanto a provisão pública de bens não-públicos, sozinha, possa ser considerada uma "prática socialista de ante-sala", seus pressupostos éticos, políticos e, em última análise, os elementos de sua visão de mundo, são imorais o suficiente. O Estado de bem-estar social é, objetivamente, a velha redistribuição forçada de renda, porém, instrumentalizada pelo aparato de "instituições democráticas".
Por sua vez, o planejamento econômico centralizado é, de fato, a tônica dos modelos econômicos que advogam a intervenção do Estado nas práticas comerciais. O planejamento consiste em uma cúpula de "especialistas" buscando, por especulação e lógica indutiva, determinar o que as pessoas gostam de comprar e o quanto elas querem pagar por esses itens. É a ponerologia totalitária aplicada à economia.
A existência de um planejamento econômico centralizado pressupõe onisciência por parte de uma pessoa ou grupo de pessoas na ordem de determinar as necessidades de cada indivíduo da nação, bem como os valores que esses indivíduos atribuem aos produtos e serviços que, particularmente, gostariam de adquirir. Ora, é claro que o planejamento centralizado não é capaz de antever um número infinito de possibilidades, preferências e, ainda, alinhar essas informações a uma estratégia de precificação que satisfaça às condições individuais de cada cidadão. A saída para tal empreitada é, invariavelmente, renunciar à pretensão de onisciência e adotar o caminho contrário: o do controle - ao invés de investigar o que os indivíduos gostam ou precisam (supondo ainda que eles não mudem de ideia) o Estado, com base em seu planejamento, passa a determinar o que os indivíduos gostam ou precisam.
Esses são os dois fatores que qualificam uma política econômica como socialista. A pergunta, neste ponto, é: esses mesmos fatores estão presentes no comunismo?
A resposta é: certamente que sim.
O comunismo pode ser considerado como a elevação do socialismo à sua solidificação apoteótica. O comunismo subscreve cada tópico da agenda do Estado de bem-estar social; afirma, evidentemente, o planejamento econômico centralizado; e concretiza seu projeto pela estatização completa dos meios de produção. Em suma, socialismo e comunismo são, essencialmente, a mesma doutrina econômica. Nas palavras dos professores Sweezy e Huberman,
Socialismo e comunismo são parecidos por ambos serem sistemas de produção baseados [...] no planejamento centralizado. O socialismo nasce diretamente do capitalismo; é a primeira forma da nova sociedade. O comunismo é um desenvolvimento subsequente ou um “estágio avançado” do socialismo. O socialismo é o estágio de transição necessário do capitalismo ao comunismo. Não se deve pensar, diante da distinção entre socialismo e comunismo, que os partidos políticos espalhados pelo mundo que se chamam Socialistas defendam o socialismo, enquanto aqueles que se intitulam Comunistas defendam o comunismo. Não é assim. Uma vez que o sucessor imediato do capitalismo só pode ser o socialismo, os partidos comunistas, assim como os partidos socialistas, têm como objetivo o estabelecimento do socialismo [3].
Sweezy e Huberman são socialistas e escrevem para o Monthly Review, um dos maiores periódicos esquerdistas dos EUA.
Apesar da reconhecida ojeriza ao comunismo, processada mesmo entre muitos socialistas, não há escapatória ao fato de que os desastres comunistas dos quais a história testemunha são, em gênero, número e grau, desastres socialistas. É inevitável como a lei da gravidade que a distribuição coercitiva de renda e o planejamento centralizado da economia sempre levam suas respectivas nações à desgraça e à miséria. Dependendo do local e do contexto cultural onde se instalam, isso pode levar mais ou menos tempo, bem como suas consequências podem ser mais ou menos dramáticas, assim como o nível da estatização pode influenciar a "estética" com que se apresenta o socialismo em determinado local. Contudo, em última instância, as doutrinas vermelhas são correlatas: tomato - tomato, socialismo - comunismo.
Notas e referências
1. O fornecimento de serviços públicos, na prática, significa que os cidadãos paguem pelos serviços e produtos que não querem consumir, que são piores do que os gostariam de comprar, além de custearem essas provisões para outras pessoas, de forma coercitiva. O Estado de bem-estar social viola o mais elementar direito à liberdade de consciência e de vontade.
2. A frequente e débil objeção que recebo ao defender o Estado mínimo na economia é a de que tal política flagelaria os mais pobres, que não têm recursos para custear tais produtos e serviços. Minha resposta, como sempre, é a de que os mais pobres já o fazem! Eles apenas pagam ao Estado para que o Estado lhes dê o que pagaram; todavia, com o diferencial de receberem muito menos do que desembolsaram tanto em termos quantitativos (o governo fica com uma fração para custos administrativos e apartamentos duplex) quanto em termos qualitativos (todos recebem um serviço péssimo).
3. SWEEZY, Paul; HUBERMAN, Leo apud WILLIAMSON, Kevin D. O livro politicamente incorreto da esquerda e do socialismo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira Participações, 2013, posição 944 (Kindle).
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