A doutrina bíblica do batismo com ou no Espírito Santo é maravilhosa e aponta para uma realidade que sintetiza a mensagem do evangelho: a de que Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo, não imputando aos homens as suas transgressões (2Co 5.19). Esta doutrina, a do batismo, mostra que Deus opera em seus eleitos a ação de purificá-los do pecado, de uma só vez, aspergindo-lhes o Espírito Santo em uma aplicação individual da obra expiatória de Cristo em favor deles. O resultado pode ser descrito conforme 1Pe 1.2: fomos eleitos...em santificação do Espírito (neste contexto, um termo equivalente à justificação)...para a aspersão do sangue de Jesus Cristo.
Porém, esta doutrina sofreu algumas reinterpretações ao longo dos últimos séculos e, em tempos mais recentes, Charles Fox Parham (1873 - 1929) efetuou uma releitura desta doutrina explicando que ela, na verdade, seria uma segunda bênção, distinta da conversão e justificação do crente. O cristão primeiro se converteria e, então, estaria unido a Cristo e perdoado. Mas, ele precisaria receber uma bênção posterior - o batismo com o Espírito - para receber poder para o testemunho, dons especiais, etc.
Para deixar a doutrina ainda mais confusa, o ramo cristão que se erigiu a partir de Parham, ramo que chamamos de "pentecostalismo", associou o que entenderam como uma segunda bênção ao anacrônico dom de línguas, dizendo que a glossolália, portanto, seria evidência do batismo no Espírito. E o texto bíblico de Atos 2 serviu como o selo de que as coisas são realmente assim. Os discípulos receberam o Espírito Santo no pentecostes; os discípulos falaram em línguas "estranhas" (volto nisso em outro artigo); logo, quem é batizado no Espírito, fala em línguas.
Entretanto, seria realmente o batismo no Espírito Santo uma bênção posterior e distinta da conversão? Quais seriam as implicações de adotarmos esta ideia? Ela teria alguma implicação para a soteriologia? E para a bibliologia? Certamente teria implicações dramáticas para a práxis cristã. Mas o mais importante aqui é: seria esta interpretação correta?
O que diz a doutrina
Frases que mencionam um certo batismo com/no/do Espírito Santo ocorrem poucas vezes no Novo Testamento (Mt 3.11; Mc 1.8; Lc 3.16; Jo 1.33; At 1.5; 11.16; 1Co 12.13), embora diversas outras passagens aludam à esta mesma operação empregando termos diferentes. Algumas vezes a sentença parece indicar que o Espírito é o agente e a igreja é o meio com o qual os crentes são batizados (frases que dizem "batismo do Espírito") e outras a sentença parece mostrar que Cristo é o agente e o Espírito é o meio com o qual as pessoas são batizadas (frases que dizem "batismo com o Espírito). Contudo, a sadia interpretação deve considerar o princípio da analogia da fé, pelo qual determinado ensino deve ser observado segundo a totalidade da revelação bíblica, e em virtude do qual uma passagem deve lançar luz hermenêutica sobre outra.
Assim, se observarmos todas as passagens que, de alguma maneira, mencionam o batismo no/com/pelo Espírito Santo, constataremos que se trata de uma mesma e única operação divina, que ocorre concomitantemente à regeneração. E três grandes razões nos levam a afirmar isso:
(I) O texto de 1Co 12.13 diz que todos os cristãos foram batizados. Considerando o fato de que na igreja de Corinto havia cristãos em pecado e de que, segundo o ensino pentecostal, uma pessoa, para receber o batismo, precisa santificar-se muito [1], somos levados a constatar que o batismo recebido pelos coríntios não foi o batismo especial e distinto da conversão preconizado pelos pentecostais. Antes, foi a obra de Deus que regenera seus eleitos, os converte e justifica.
(II) Não há, na Escritura inteira, uma só exortação para que os crentes (os que realmente foram salvos) busquem uma bênção posterior e adicional que, supostamente, os capacitaria para o testemunho. Devemos nos perguntar se uma operação paracletológica aparentemente tão importante como esta não deveria ser alvo de constantes (ou ao menos de um!) encorajamento apostólico para que os crentes a buscassem. Se o suposto "batismo pentecostal" fosse realmente algo tão importante e necessário, não deveríamos encontrar nas epístolas alguma exortação do tipo: "Vocês, que já creem, busquem com afinco receber esta outra bênção porque vocês precisam de poder para testemunhar do evangelho!"? Mas não encontramos. Na verdade, o principal texto-base sobre o qual o pentecostalismo se apoia na formulação desta doutrina (o de Atos 2) é um texto descritivo, reconhecidamente o tipo de texto a partir do qual NÃO DEVEMOS formular doutrinas.
(III) O texto de Ef 4.5, aparentemente e quase certamente se refere ao batismo do Espírito. Se isso for certo, temos então uma declaração explícita de que não existe um batismo posterior e distinto, afinal, "há um só Senhor, uma só fé e um só batismo".
Mas e quanto às diferenças nos termos? Às vezes a Bíblia fala em batismo com o Espírito e outras vezes em batismo pelo Espírito. A isso respondemos que, caso acepções rígidas de termos devam ser uma pauta interpretativa, então deveríamos considerar como substâncias distintas os termos "coração", "alma" e "entendimento" em Mateus 22.37; porém, sabemos que esses termos não indicam substâncias diferentes, antes, todos apontam para o aspecto interior do ser humano, sua mente e afeições. Segundo Charles C. Ryrie, é "mais provável que essa frase, usada de maneira pouco frequente e aparentemente técnica, em todas as ocorrências se referisse à mesma atividade [2]". Eu apenas retiraria o "provável" da afirmação de Ryrie para dizer que CERTAMENTE essa frase, em todas as suas ocorrências, se refere à mesma coisa. O literalismo na interpretação bíblica, com efeito, tem conduzido a graves distorções doutrinárias no pensamento cristão.
Portanto, vemos que o batismo no Espírito é uma bênção comum (1Co 12.13; Ef 4.5), gratuita (1Co 2.12; Ef 2.8,9) e definitiva (2Co 1.21,22; Ef 4.30). Ele posiciona o crente no corpo místico de Cristo e o capacita para o testemunho (At 1.8; 1Co 2.4), para a edificação da igreja (1Co 12.12-20; Ef 2.22) e, gradativamente, restaura no cristão a imagem de Deus para a sua glória (2Co 3.18; Ef 4.24; Cl 3.10).
Implicações da formulação pentecostal da doutrina
Além de a interpretação pentecostal acerca do batismo no Espírito ser essencialmente falha, ela traz algumas implicações perturbadoras para a doutrina cristã.
A primeira delas seria na eclesiologia. Afirmar que existem dois batismos diferentes, um deles comum a todos os crentes e outro reservado a quem o busca com todos os critérios - empíricos - da cartilha pentecostal é pontuar uma linha divisória na única operação divina que visa a união dos que creem em um só corpo. Tendo em mente a figura do Templo de Salomão, Paulo diz:
"Assim, pois, não sois mais estrangeiros, nem forasteiros, antes sois concidadãos dos santos e membros da família de Deus, edificados sobre o fundamento dos apóstolos e dos profetas, sendo o próprio Cristo Jesus a principal pedra da esquina; no qual todo o edifício bem ajustado cresce para templo santo no Senhor, no qual também vós juntamente sois edificados para morada de Deus no Espírito" (Ef 2.19-22).
O batismo no Espírito é precisamente aquilo que nos une mutuamente como cristãos. Neste ponto, algum defensor do pentecostalismo poderia afirmar que sua doutrina não divide a igreja, pois um dos batismos coloca o crente neste corpo.
Entretanto, na visão pentecostal, permanece o fato de que, neste corpo, alguns são receptáculos de uma bênção especial e posterior enquanto todos os outros, ou são carnais porque não estão buscando este batismo, ou são carnais porque o estão buscando mas não o receberam ainda por não estarem suficientemente santificados. E para piorar, os que já receberam este batismo, têm o poder para testemunhar de Cristo enquanto os outros não. Devemos ignorar que o único fundamento legítimo para o testemunho cristão é a ressurreição de nosso Senhor (1Co 15.14), e que, uma vez que quem está lendo este artigo não viu o Cristo ressurreto com os próprios olhos mas crê como se tivesse visto, não tem o poder necessário para evangelizar? Devemos estranhar o apóstolo Pedro dizendo aos seus destinatários que mesmo eles não havendo visto Cristo, eles o amavam e nele confiavam exultando com alegria indizível e cheia de glória (1Pe 1.8)? É certo que não! Mas de acordo com a perspectiva pentecostal eles ainda não receberam a "segunda bênção". Eles creem em Cristo e a ressurreição do Senhor deu novo significado às suas vidas. Mas eles ainda lhes falta algo; eles estão quase lá...!
A segunda implicação desta doutrina pentecostal se dá em uma perigosa afirmação da contemporaneidade dos dons revelatórios ou extraordinários do Espírito Santo. A doutrina pentecostal ensina que, juntamente com o batismo no Espírito, alguns dons são dados ao cristão. E também ensina que dentre esses dons bem podem estar aqueles de natureza revelatória, assim como exibidos pelos apóstolos. Eu deixarei a questão da contemporaneidade para outro artigo, mas aqui é preciso adiantar algo. Ou os dons revelatórios ainda existem e o cânon cristão não está fechado, ou nossa Bíblia está completa, a revelação especial de Deus a nós foi bem-sucedida e, assim, os dons revelatórios cessaram. As duas posições são concorrentes e não podem coexistir. Se Deus, pelo Espírito Santo, ainda fala com seu povo por novas palavras e revelações, então a Escritura não está fechada.
Certo dia, um continuísta, argumentando comigo, disse que as profecias ainda aconteciam, mas consistiam de exortações pessoais e particulares, e jamais traziam novas verdades religiosas ou doutrinais. Ele estava tentando preservar a suficiência da Escritura. Em resposta, eu disse a ele que não importava o conteúdo da profecia, mas o autor. Se é o próprio Deus quem está falando, então as palavras que estamos a ouvir são palavras de Deus. E se são palavras de Deus, então devemos acrescentá-las às nossas Bíblias, e segue-se que nossas Bíblias não estão prontas ainda.
Contudo, a Escritura parece mostrar o contrário. Entre inúmeros textos e uma teologia bem amarrada, eu destaco a passagem de 2Pe 1.3,4:
"Visto como o seu divino poder nos tem dado tudo o que diz respeito à vida e à piedade, pelo pleno conhecimento daquele que nos chamou por sua própria glória e virtude; pelas quais ele nos tem dado as suas preciosas e grandíssimas promessas, para que por elas vos torneis participantes da natureza divina, havendo escapado da corrupção, que pela concupiscência há no mundo."
Portanto, uma vez que o testemunho de Jesus Cristo é dado pela Escritura (Jo 5.39), é justo dizer que ela é suficiente para a nossa vida e, por consequência, cessaram aqueles dons revelatórios amplamente necessários no primeiro século, quando o cânon cristão não estava ainda fechado.
Finalmente, uma terceira implicação da doutrina pentecostal dos dois batismos, e talvez a mais grave delas, é de natureza soteriológica. No exato momento em que preconizarmos a necessidade de uma segunda bênção, estamos afirmando a insuficiência da obra de nosso Senhor. Observe isto: a obra de Cristo foi determinada na eternidade (Ap 13.8). Na eternidade, Deus se agradou em glorificar seu nome decretando a salvação de alguns por causa dos seus pecados. Deus quis salvar pecadores de sua própria ira escatológica e foi isso que, soberanamente, ele fez, e o fez por meio de Cristo. Isso faz com que o sacrifício de Cristo e sua glória resultante seja nada menos que o CENTRO DO DA MENTE E DOS PROPÓSITOS ETERNOS DE DEUS! Pela obra expiatória de Cristo um eleito seria salvo. Ele seria salvo! Isso não é pouca coisa! A magnitude da obra de Cristo e a grandeza incontornável da consequência dessa obra para o pecador que foi salvo deveria nos fazer rejeitar qualquer ensino que pregue a necessidade de algo a mais para cristão. Um pecador que foi salvo e, assim, batizado no Espírito Santo, já recebeu tudo! Não há mais nada para ele pelo simples fato de que não há nada maior a ser recebido do que o perdão de Deus e sua amizade. Justamente por isso o apóstolo Paulo foi capaz de dizer aos efésios: "Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o qual nos abençoou com todas as bênçãos espirituais nas regiões celestes em Cristo" (Ef 1.3). Deus não apenas nos abençoou em Cristo, mas [já] abençoou com TODAS as bênçãos espirituais naquele que nos comprou para sermos seus.
Isso significa que não há uma "segunda bênção" a ser desejada pelo cristão. Que outra bênção ele poderia querer além da amizade com Deus? Dizer que fomos regenerados, mas precisamos de algo a mais é escarnecer da obra de Cristo, que foi toda suficiente. Nele recebemos todas as bênçãos espirituais. Não há outra a ser almejada.
Assim, podemos concluir que a doutrina pentecostal do batismo no Espírito como uma segunda bênção deve ser enfaticamente rejeitada. É certo que o pentecostalismo não fere nenhuma doutrina cardeal do cristianismo. É certo que há muitos pentecostais (entre os quais alguns são amigos meus) piedosos e verdadeiramente servos de Cristo. É também certo que o pentecostalismo está, gradativamente, gerando expoentes inteligentes, canais para a promoção de uma perspectiva mais saudável e cristocêntrica de sua fé [3]. Mesmo assim, a doutrina pentecostal dos dois batismos é deveras débil e, visto que trás implicações ruins para o cristianismo, deve ser rechaçada.
Notas
1. BÍBLIA DE ESTUDO PENTECOSTAL. Rio de Janeiro: CPAD, 2006. p. 1627
2. RYRIE, Charles C. Teologia Básica. São Paulo: Mundo Cristão, 2004. p. 422
3. Um destes expoentes, que alegremente menciono, é o Gutierres Fernandes Siqueira, do site Teologia Pentecostal.
O conhecimento, em sua melhor definição, abrange os conceitos de fé (crença), de verdade e de justificativa, como mostrarei em texto futuro. Isso vale para todo o conhecimento, em qualquer área. Quando falamos sobre epistemologia (teoria do conhecimento), logo, o conceito de verdade está embutido. Por exemplo, se eu digo que tenho uma nota de R$ 10,00 em minha carteira, eu estou dizendo que conheço o fato de ter uma nota de R$ 10,00 em minha carteira. Ao mesmo tempo, eu estou dizendo que é verdade o fato de que tenho uma nota de R$ 10,00 em minha carteira (supondo que eu esteja sendo sincero e não queira enganar ninguém, e supondo que esta afirmação corresponda à realidade: de fato, há uma nota de R$ 10,00 em minha carteira). Neste ponto, temos um vislumbre de como se parece a intersecção entre as disciplinas da epistemologia e da metafísica. A epistemologia trata do conhecimento e a metafísica trata da realidade ou do que é real. De modo rude, a pergunta norteadora da primeira é: "Como conhecemos?", e a da segunda é: "O que é realidade?".
Então, é evidente que ambas as disciplinas, como não poderia deixar de ser, subsistem de forma interdependente. Contudo, podemos notar, nas áreas da filosofia, uma multiplicidade de teorias que se propõem a abordar o tema da verdade. Estranhamente, este tópico deixou de ser propriedade exclusiva da metafísica. Existem, assim, as teorias deflacionárias, as teorias epistêmicas e as teorias metafísicas.
As teorias deflacionárias asseveram que a verdade não é uma propriedade de uma proposição ou afirmação [1]; antes, verbalizar a veracidade de uma proposição é assentir à veracidade de sua elocução ou é instrumento para coerção do interlocutor. Por sua vez, as teorias epistêmicas defendem que a verdade é a propriedade de uma proposição ter sua assertibilidade garantida. E, por fim, as teorias metafísicas postulam que a verdade é a propriedade de uma proposição ter perfeita correspondência para com a realidade. Meu propósito será levantar um caso em favor da metafísica como única disciplina portadora dos direitos sobre a teoria da verdade e, evidentemente, justificarei a importância do assunto.
As teorias deflacionárias asseveram que a verdade não é uma propriedade de uma proposição ou afirmação [1]; antes, verbalizar a veracidade de uma proposição é assentir à veracidade de sua elocução ou é instrumento para coerção do interlocutor. Por sua vez, as teorias epistêmicas defendem que a verdade é a propriedade de uma proposição ter sua assertibilidade garantida. E, por fim, as teorias metafísicas postulam que a verdade é a propriedade de uma proposição ter perfeita correspondência para com a realidade. Meu propósito será levantar um caso em favor da metafísica como única disciplina portadora dos direitos sobre a teoria da verdade e, evidentemente, justificarei a importância do assunto.
Como foi dito, as teorias deflacionárias da verdade defendem que o acréscimo da sentença "é verdade" a uma proposição não aponta para uma relação de correspondência para com a realidade; apenas afirma a veracidade do pronunciamento de determinada asserção. Em outras palavras, essas teorias, ao postularem a veracidade de uma proposição, intentam somente um endosso para com o fato de que a proposição foi verbalizada. É como se, ao dizer: "Tenho uma nota de R$ 10,00 em minha carteira", eu não tivesse em mente a existência de tal nota em minha carteira, mas tivesse em mente a verdade de que eu, com efeito, afirmei ter uma nota de R$10,00. Ademais, outras teorias deflacionárias julgam a inserção de "é verdade" a determinada proposição como ferramenta de poder coercitivo. Segundo estas visões, se alguém afirma que determinada proposição é verdadeira, essa pessoa não pretende relacionar o que está dizendo à natureza dos fatos, antes, intenta coagir seu interlocutor a acreditar no que foi dito, ainda que não haja relação para com a realidade.
Essas teorias de verdade, entretanto, falham no ponto mais substancial que pretendem administrar: propondo-se como teorias da verdade, ao invés de abordarem a essência da verdade, endereçam seu emprego semântico. Elas deixam de lado justamente o que se propuseram fazer. DeWeese e Moreland denunciam muito bem essa falha essencial das teorias deflacionárias. Eles dizem: "[…] a suposta análise lógica das afirmações que contém 'é verdadeira' não faz aquilo que alega fazer: ela não analisa o significado de 'é verdadeira', mas analisa somente o uso da frase. […] uma teoria da verdade deve, primeiro, apresentar um esclarecimento sobre o próprio conceito, ou seja, sobre aquilo que queremos dizer quando usamos 'é verdadeira', e não somente como usamos o conceito" [2].
Não obstante, as outras teorias deflacionárias, que destacam o uso coercitivo da sentença "é verdade", são, outrossim, débeis. Elas partem de uma inferência indutiva (que é falaciosa por natureza) para sublinhar que sempre que alguém afirma a veracidade de uma sentença, essa pessoa intenciona coagir intelectualmente seu ouvinte. Em outras palavras, elas creem que cada ser humano da face da terra, em todos os seus séculos e milênios de existência, usam e usaram a sentença "é verdade" como instrumento de poder. Ora, se esta suposta verdade não pode ser verificada, então ela é tola e deve ser descartada. Além disso, vou ignorar momentaneamente que, se as coisas são de fato assim, então a própria afirmação de tais teorias deflacionárias deve ser considerada uma manipulação semântica, devendo, portanto, ser rechaçada.
Prosseguindo, vimos também que existem teorias epistêmicas da verdade. Elas, ao contrário das teorias deflacionárias, ensinam que a verdade é sim uma propriedade de uma proposição, contudo, essa propriedade não é de relação para com a realidade, mas do conjunto de razões que se tem para promulgar a veracidade do que foi afirmado. Elas relacionam a veracidade à assertibilidade da proposição. Para ilustrar, retomo o exemplo da nota na carteira. Suponha que eu afirme, com toda a certeza e honestidade, que há uma nota de R$ 10,00 em minha carteira, afinal, minha esposa disse que colocaria uma nota de R$ 10,00 em minha carteira como troco de compras que ela fez no supermercado. Além disso, nesta manhã, ao me dirigir à cozinha, eu observei de relance minha esposa mexendo em minha carteira. E, uma vez que confio em minha esposa e sei que ela não mente, posso afirmar, com toda a certeza, que há uma nota de R$ 10,00 em minha carteira. Porém, eis que abro minha carteira e não vejo nota alguma nela. Isto se deve a alguma falha de caráter em minha esposa? Será que eu tive a ilusão de que ela estava mexendo em minha carteira nesta manhã? Nenhuma das duas opções. Ocorre que minha esposa simplesmente se esqueceu de colocar aquela nota em minha carteira, e ela mexeu em minha carteira nesta manhã para tomar nota de meu RG, por alguma razão.
É fácil, portanto, constatarmos a falha das teorias epistêmicas da verdade. Elas relacionam a veracidade de uma proposição à sua assertibilidade ou ao conjunto de fatores que nos permitem deduzir sua factualidade, ignorando, contudo, que nossa convicção sobre a realidade dos fatos, não importa o quão firmemente esteja fixada, pode não corresponder a eles. Não importa o quão sofisticados possam ser os critérios que elejamos para a afirmação de uma assertibilidade garantida, eles não são capazes de garantir veracidade a não ser que seu foco seja desviado da assertibilidade para a realidade. Isto nos leva, então, às teorias metafísicas da verdade.
Conforme pontuei, as teorias metafísicas da verdade se distinguem das teorias deflacionárias porque nelas, a verdade é uma propriedade de uma proposição. Ademais, elas se distinguem das teorias epistêmicas pois, para elas, a propriedade da verdade opera em correspondência para com a realidade. Portanto, somente as teorias metafísicas da verdade podem ser consideradas corretas e fazem jus ao que se propõem, visto que elas refletem o ensino bíblico sobre a verdade. Jesus Cristo disse ser A VERDADE (Jo 14.6). Isto é ontologia pura! Se Jesus Cristo é a verdade, então a verdade (I) não está em nós mesmos, não sendo um produto da nossa mente e existindo à parte dela, (II) é absoluta, pois não encontra-se relativa a cada ser humano ou coisa, e (III) é objetiva, pois quer eu esteja convicto acerca dela, quer não, sua natureza não muda e ela continua existindo. Destarte, afirmar uma explicação sobre a verdade que se pareça com a teoria metafísica, não somente é adequado como é exclusivamente adequado. Elas ensinam uma doutrina da verdade que ecoa o ensino bíblico ao mesmo tempo em que possibilitam o uso correto das proposições.
Recapitulando brevemente, uma teoria correta acerca do que é real e verdadeiro é de fundamental relevância para a epistemologia. Como disse, subjaz ao conhecimento o conceito de realidade pois, para conhecermos algo, é necessário que este algo seja real ou verdadeiro. Do contrário, não poderemos arrogar conhecimento sobre tal objeto. Eu não posso conhecer "srghtawwwwskh", por exemplo. Esta palavra não existe, nem mesmo como uma abstração extralinguística, e não representa absolutamente nada. Se "srghtawwwwskh" não existe, não é real, então não posso conhecer "srghtawwwwskh". Sendo assim, definir o que é real ou verdadeiro é essencial para a afirmação de uma epistemologia correta. Esta, por sua vez, é essencial para um conhecimento correto. Simultaneamente, vimos que não podem existir diferentes teorias sobre a verdade sendo, todas elas, igualmente válidas. Isso vai contra o próprio uso do termo "verdade" segundo se encontra mais profundamente implantado na natureza humana. Sem esta informação implantada na natureza o homem, nenhum conhecimento seria possível.
Você quer conhecer algo verdadeiramente? Quer ter um conhecimento real sobre teologia, mecânica de aeronaves ou história das civilizações? Então adote uma epistemologia correta [3], em cuja composição encontra-se uma correta teoria da verdade, e esta, necessariamente, funcionando em termos de correspondência para com a realidade.
Notas
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1. Deixarei as distinções técnicas entre proposição e afirmação de lado neste artigo e empregarei os termos um pelo outro.
2. DEWEESE, Garret J.; MORELAND, J. P. Filosofia concisa: uma introdução aos principais temas filosóficos. São Paulo: Vida Nova, 2011. p. 61.
3. Sobre epistemologia, leia também o artigo A rejeição da Escritura como fundamento epistemológico e a resultante confusão de termos.